ENTRE A CATÁSTROFE E A CAUTELA (do livro Arte, Olhar e Mundo)
produção e aceleração
Edward Burtinski
O olhar se constrói no
mundo, mas, ao mesmo tempo, é pelo olhar que o mundo em que estamos se
configura. Assim, quando falamos de um período histórico, como o moderno ou o
contemporâneo, estamos nos referindo tanto ao que aí aconteceu quanto à nossa
maneira de ver esses acontecimentos, sem esquecer o quanto é a partir deles que
nosso modo de ver se estabeleceu. Falar de um mundo é, desde logo, falar do que
aí acontece tanto quanto falar do olhar que aí se constitui e a esse mundo
passa a interpretar.
O mundo moderno, ou
mais especificamente, o mundo dos tempos do modernismo, que se configura em
torno ao início do século 20 é tanto a época da
intensa industrialização quanto um contexto de práticas sociais e culturais que
caracterizam determinados modos de ver. Do ponto de vista das práticas do
trabalho e da economia, podemos dizer que se trata por excelência de um mundo
que tem por valor central a produção.
Um mundo da produção em
que a aceleração se impõe como uma de suas características centrais. Aceleração
que gera mais e mais produção, mais e mais circulação e, consequentemente,
situações de congestão, seja com relação aos transportes, ao crescimento das
cidades ou à acumulação de capital. Situações cujo enfrentamento tem levado não
apenas a reconfigurações dos mecanismos da produção, da circulação e do
consumo, mas a reconfigurações também do olhar, do modo de ver e de entender o
que aí acontece.
Mundo da máquina e do
boom tecnológico em que, por um lado, a aceleração promove a multiplicação e a
fragmentação típicas dos movimentos de expansão enquanto, por outro, a
necessidade de manter a solidez e a eficiência
da indústria pesada exige o controle que leva à centralização e à
contenção. Também um mundo em que o olhar tanto se mostra atento à fluidez e à
inovação quanto valoriza o controle e a centralização, o que favorece o
surgimento da figura do líder forte e do estado com poderes ampliados. O peso e
a força a serviço da intensificação da produção e da aceleração da distribuição
e da acumulação de riqueza, ou seja, o processo de ampliação e
descentralização da produção e do
consumo tendo como contrapartida a centralização e a concentração do comando e
da renda.
entre a utopia e o pragmatismo
Ao empuxo para produzir
mais e mais e à preocupação com racionalizar os métodos e processos, gerando
mais e mais aceleração, correspondeu, então, a obsessão com inovar, organizar e
comandar. Uma obsessão que levou à busca do futuro a qualquer preço e às
fantasias de que seria possível racionalizar as práticas sociais de modo a
construir esse futuro como um mecanismo social perfeito e eficiente, uma
máquina capaz de estabilizar a vida em um modo ideal de viver. Daí foi um passo
para as proposições de controle da sociedade e do indivíduo pelos mecanismos do
estado totalitário comandado por um partido único e pela figura do líder
carismático.
Chaplin, O grande
ditador
É claro que em amplos
setores do ocidente o bom senso prevaleceu e não passaram despercebidas as
falácias desse tipo de idealização que não promovia, mas limitava a vida.
Setores estes que preferiram apostar na gradual organização das forças
produtivas, não rompendo com o presente para chegar a um idealizado futuro, mas
buscando através do diálogo a inserção crítica nos mecanismos sociais e produtivos.
Uma inserção pragmática e respeitadora, antes de mais nada, do jogo
democrático, entendido como única saída para uma efetiva promoção da
individualidade e da vida.
Com o que, o mundo da
produção viu-se cindido em dois caminhos. De um lado o rumo da inserção crítica
no pragmatismo da sociedade aberta, promotor do privativismo e das relações
democráticas dos estados liberais, no sentido mais amplo e clássico da palavra,
incluindo os regimes do bem-estar social. De outro lado, as trilhas seguidas
pelas fantasias idealizantes das propostas utópicas de uma sociedade fechada
comandada por um estado totalitário constituido nos moldes do comunismo, do
fascismo ou do nazismo. Em uma posição intermediária, as sociais-democracias
que respeitam as práticas democráticas e o privativismo, embora com uma forte
presença do estado e regulação da propriedade privada.
flexibilidade e descentralização
Na segunda metade do
século 20, em parte devido aos percalços enfrentados - o rescaldo das guerras,
o embate entre estatismo e privativismo, etc. - mas principalmente como
consequência da intensificação da aceleração e da necessidade de agilizar os processos da produção e da acumulação de
capital, a sociedade da produção passa por uma decisiva reconfiguração, não no
sentido de deixar de ser uma sociedade da produção, mas para se constituir no
que poderíamos chamar de uma sociedade da produção intensificada.
Mais do que antes e de
forma mais imediata, tudo se transforma em mercadoria, incluindo os serviços e
a produção simbólica. Com o que o produto de mercado, que se volatiliza e se
faz etéreo, se torna mais ainda generalizado e onipresente. O mundo da
maquinaria pesada, da densidade e da solidez dá lugar ao mundo da comunicação,
da fluidez e da descentralização, o tempo da ênfase no hardware dá lugar
ao mais ágil e sutil tempo do software. As certezas do modernismo e da
idealização utópica já não encontram lugar para prosperar, o centralismo
estatizante se mostra ineficiente e incapaz de acompanhar os novos ritmos, com o
que, o comunismo soviético acaba por se desmantelar.
narcisismo e depressão
O indivíduo passa a se
reconhecer já não como o sujeito forte da razão, configurado na imagem do
mestre, do gênio e do herói, tal como nos tempos anteriores, mas como um sujeito
do desejo, frágil e habitado pela dúvida e pelo conflito. Um sujeito, tal como
outros valores do moderno, posto em questão e visto antes como uma crise do que
como uma unidade. Algo para que Freud já havia chamado a atenção, mas que,
agora, se evidencia de forma generalizada. A personalidade, tal como aponta
Lacan, não mais do que um momento de passagem.
Ao mesmo tempo um
indivíduo mais entregue a si mesmo e mais submetido à necessidade de produzir,
agora introjetada como uma busca pessoal de afirmação pelo desempenho. Liberado
do controle disciplinar e estimulado ao desenvolvimento de projetos pessoais,
esse indivíduo já não se sente pressionado à constituição de um eu cuja
unicidade mais facilmente poderia ser controlada pela vigilância institucionalizada.
Ao contrário, o que passa a se constituir é a imagem de um eu flexível e
adaptável que se vê como pura possibilidade de ser das mais diversas maneiras.
“Eu posso ser isto, eu posso ser aquilo” e, em última análise, “nenhuma forma
fixa me limita e, por isso, eu sou feliz (ou me imagino feliz) porque eu posso
poder o que eu quiser”.
Luc Tuymans
Como contrapartida,
entretanto, um eu cuja liberdade não se configura senão como um irrefreável
impulso para produzir que o padroniza segundo os moldes da hiper-aceleração da
produtividade e do consumo. O que gera uma coletividade de eus soltos e livres,
mas conectados por um mesmo pseudo desejo que não passa de uma induzida
demanda. Uma personalidade fluida, mas padronizada.
Uma destituição do
sujeito e uma hipervalorização do eu. O que não chega a se constituir em
novidade, mas acontece agora de uma nova maneira que, se por um lado infla o
eu, por outro, acaba por lhe impor o preço de uma frustrante impotência. Um eu
fluido e pressionado pela necessidade do desempenho acaba por desaguar na
compulsão e no narcisismo, não apenas imaginando-se como o que pode, mas como o
que tem de poder mais e mais. O que gera uma ansiedade sem limites e uma
super-exigência que o leva fatalmente ao fracasso e à depressão, afogado no seu
isolamento. Não é por acaso, que os terapeutas têm reconhecido o transtorno
boderline e a depressão como ocorrências das mais frequentes nos tempos
transcorridos desde meados do século 20.
desilusão e pessimismo
Por outro lado, pesam
sobre esse sujeito fragilizado tanto a descrença nas antigas certezas,
apregoadas pela supervalorização moderna do racionalismo e do centralismo,
quanto a desilusão com a falência das idealizações utópicas encarnadas pelos
regimes totalitários que se mostraram demasiadamente rígidos para acompanhar a
flexibilização da sociedade da produção em sua super-intensificação. O que
colabora para acentuar o quadro depressivo e direcioná-lo para a revolta.
Desiludido e revoltado, o indivíduo que um dia se deixou embalar pelas
idealizações utópicas, as quais agora vê caírem por terra, tende então e se
entregar ao que denominamos de pessimismo catastrófico. Já não lhe
importa senão externar a sua inconformidade e a sua revolta, enquanto se deixa
consumir pela certeza de que o mundo não tem como se tornar melhor a não ser
que aconteça uma catástrofe.
Grupo Femen
Um pessimismo que
conduz a uma radicalidade que se neutraliza pelo seu próprio exagero, não
chegando a propor nada a não ser a seu desacordo e sua impotência ante um mundo
em que não vê como introduzir correções. É o que ouvimos quando Baudrilliard
propõe que só a revolução total, teórica e prática, pode restaurar o
simbólico pela demissão do signo e do valor. Até os signos devem queimar.(1)
Proposta que, no entanto, aponta mais para uma impossibilidade do que para um
caminho. Quem estaria suficientemente fora do signo, fora da linguagem, para
realizar a incineração?
Um radicalismo que
tenta se impor como afirmação de um novo tipo de iluminação e acaba por não
semear mudança alguma. Algo que também encontramos tanto nos fundamentalismos
religiosos quanto na fúria afirmativa de certas políticas identitárias, como a
dos grupos feministas que se ocupam
antes em proclamar o ódio ao homem do que em promover a mulher. Um caminho que
retoma os antigos rumos das afirmações totalitárias, mas já sem o aceno da
utopia no fim do percurso.
o grande embate
Com suas radicais e
desesperançadas investidas contra a sociedade aberta, o pessimismo catastrófico
se qualifica como herdeiro legítimo do autoritarismo da sociedade fechada cujos
projetos naufragaram ao longo do século 20, enquanto o mundo do livre jogo
democrático se consolidava. Uma postura, a do pessimismo catastrófico, comum a
grupos com bandeiras aparentemente tão distintas como a defesa dos excluídos ou
a crença na supremacia branca, o internacionalismo socialista ou o nacionalismo
mais xenófobo. Todos, entretanto,
posicionados desde a mesma perspectiva: a decepção e a ira dos grandes
ressentidos e inconformados com o fracasso dos devaneios totalitários que se
apresentavam como caminhos para a utopia.
Reeditam, dessa maneira o grande embate entre sociedade fechada e
sociedade aberta que vem-se travando desde o início do século passado. O que
não é a mesma coisa que a sempre invocada oposição entre esquerda e direita,
denominações imprecisas que não deixam claras as coisas.
Ultimamente têm surgido
vozes que apontam Hitler como antes perfilado com a esquerda do que com a
direita, o que evidentemente não confere com o modo como os próprios nazistas
se reconheciam, tendo consolidado suas posições justamente no combate à
esquerda alemã. É claro, entretanto que, guardando as diferenças, cabe a
aproximação entre o autoritarismo de Hitler e o de Stalin. A questão é que,
tanto sob a bandeira da esquerda como sob a bandeira da direita, se
acobertaram, no século 20, os que defendem a sociedade fechada, assim com
também em ambos os lados encontramos defensores da sociedade aberta. Não foram
poucos os que nos países que compunham o bloco comunista, foram reprimidos e
punidos, por tentarem, mesmo considerando-se ligados à esquerda, caminhar na
direção de uma sociedade mais aberta. Essa, portanto, a verdadeira divisão: a
oposição entre a crença na necessidade de uma sociedade fechada ou a aposta nas
possibilidades da sociedade aberta. E não a adesão ao que seria “a esquerda” ou
“a direita”. Esse o grande embate que vem-se travando desde os primeiros tempos
do século 20. Uma oposição que, infelizmente, segue assombrando o mundo
ainda em pleno século 21.
radicais depredam
igreja no Chile
Um confronto ao longo
do qual, as sociedades abertas, ainda que nelas possamos reconhecer a
necessidade de correções e até mesmo a urgência de mudanças de grande envergadura,
produziram saltos tecnológicos que ampliaram a comunicação, melhoraram a saúde
e aumentaram a perspectiva de vida. O fato é que o que até agora se tem
mantido, senão como o melhor rumo ao menos como o menos ruim, é o caminho da
sociedade aberta e das democracias dos regimes que, de um modo amplo, podemos
considerar como liberais. Já as sociedades fechadas, seja sob a égide da
esquerda ou da direita, em nome da tradição ou em nome do socialismo, se
notabilizaram por criar campos de concentração, produzir o holocausto e
implantar estados policialescos, enquanto viam seus planos sistematicamente
fracassar e as populações insistirem em buscar rotas de fuga.
Fracassos esses a que
se somam às dificuldades de certos regimes fundamentalistas orientais em
acompanhar o ritmo dos regimes abertos ocidentais, ou de inspiração ocidental
como o Japão. Se ainda acrescentamos a esse contexto a observação de que as
pressões geradas por um mundo super-acelerado tendem a produzir a depressão e a
revolta sem rumo, temos o caldo em que se desenvolve a cultura do radicalismo
irado que tem movido grupos que vão desde os adeptos do Estado Islâmico até o
socialismo pós-marxista ocidental, passando pelas reivindicações identitárias,
pelos que pregam a supremacia branca e outras tantas motivações que nada revelam
senão a insegurança e o ressentimento do pessimismo catastrófico.
o olhar cauteloso
Apesar do ruído causado
pelas manifestações do pessimismo catastrófico, uma outra atitude tem-se
consolidado nas práticas da sociedade aberta e se configurado nas diversas
realizações das artes. A atitude da esperança cautelosa, que se mostra
como uma aposta na possibilidade da introdução de correções com que se
enfrentam problemas localizados, promovendo o diálogo em busca de acordos e
consensos, sem entretanto se entregar à ilusão de encontrar soluções mágicas, e
também sem cair na proposição autoritária de querer impor um único caminho.
Sun Yuan e Peng Yu
É bem mais complexo o
convívio na sociedade aberta e, às
vezes, bem mais lento o enfrentamento e a solução de problemas, especialmente
quando se trata de alterar situações de poder prejudiciais à maioria. Na
sociedade fechada, entretanto, se, por um lado, a centralização do poder
permite tomadas de decisão mais rápidas e o enfrentamento mais vigoroso de
certas situações, essa mesma centralização serve à imposição de decisões que
interessam apenas ao grupo dominante, eliminando pela força a oposição. O que,
como mostra a experiência, não apenas é injusto, mas não oferece soluções
duradouras, na maior parte das vezes, apenas agravando os problemas sociais.
Tão ou mais prejudicial
e sem saída se mostra o autoritarismo do pessimismo catastrófico que, ao
apostar na contestação pela contestação, recusando-se às pequenas e provisórias
intervenções, aposta em nada e nada tenta resolver. Com o que, ao invés de
conduzir à mudança - que deixa por conta de uma esperada e desejada catástrofe
– acaba por levar ao acomodamento com o contexto contra o qual aparentemente se
insurge. É justamente a crítica que o radical Slavoj Zizec, embora ele próprio
dado a visões catastróficas, faz ao discurso da teoria queer de Judith
Butler, ao afirmar que: Embora Butler insista no seu caráter subversivo, é
fácil demonstrar que a subjetividade que rejeita toda identidade fixa...
adequa-se perfeitamente à sociedade consumista atual.(2)
O fato é que apostar em
nada é escapar do problema para lugar nenhum, ou seja abraçar a própria
impossibilidade de estar aí. E não é de admirar que esse tipo de posicionamento
acabe por levar à auto-imolação dos terroristas que se entregam à morte com o intuito
de a morte causar ao outro. É claro que nem todos os que assumem a posição do pessimismo
catastrófico pretendem chegar a esse ponto. Acenam entretanto, sem sombra
de dúvida, na direção oposta à da promoção da vida.
Ao contrário, é na
vida, no ir entre o que vive, ainda percebendo que o que vive
incomoda de vida, como lembra João Cabral,(3) que apostam os que
tentam construir o caminho da esperança. É a estes que se refere Richard Rorty,
quando afirma que estamos ficando contentes em nos vermos como animais
consertadores que se fazem enquanto seguem em frente.(4)
Ou seja nem o sujeito
forte e dono da verdade, nem o sujeito irado que se compraz em aguardar uma
possível catástrofe, mas um cauteloso sujeito pragmático que se contenta com o
caminho da lenta construção do mundo e de si mesmo e não se deixa apanhar nem
pela sedução do sonhos totalitários nem pelas malhas do pessimismo. O sujeito
da esperança cautelosa que não esmorece e, mesmo não se furtando à
crítica dos problemas e das mazelas gerados pela hiper-aceleração da sociedade
da produção, não se furta ao diálogo com o mundo e com o outro.
O que não aponta, em
nenhuma hipótese para o abandono dos sonhos e da vontade de mudar para melhor o
mundo que está aí. Olhar de forma pragmática não significa nem a fácil adesão
nem a desistência do “não adianta, então deixa como está”, ao contrário, este é
antes o beco sem saída em que acaba por cair o pessimismo catastrófico.
Ver o mundo com esperança acompanhada de cautela nada tem a ver com o abandono
do sonho, pois é o sonho que alimenta a esperança.
Não é porque algo é
impossível, ou nos parece impossível, mesmo que por muito tempo ou talvez para
sempre, que temos de deixar de pensar nisso. Ao contrário, é porque sonhamos
com o que parece impossível e porque o desejo jamais se sacia que somos os que
não se contentaram em andar de quatro e nos tornamos humanos. Nenhum erro,
portanto com a utopia, com a crença, ou mesmo fé, em que conseguiremos ir até
lá depois do arco iris, onde os pássaros cantam e o céu é azul. O errado é
querer apontar o caminho com a certeza que não temos e exigir que os outros o
sigam a qualquer preço, porque aí o sonho deixa de ser sonho e passa a ser
pesadelo. Diz um velho poema azteca que viemos aqui para poder, por uns tempos,
dormir e sonhar.(6)
josé luiz do amaral
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1. Jean Baudrillard. Para uma crítica da economia política
do signo. R. J., Martins Fontes, 1972.
2.
Slavoj Zizec. A coragem da desesperança. Rio de Janeiro, Zahar,
2019. p.235
3. João
Cabral de Melo Neto. Cão sem plumas (poema). 1950.
5.
Richard Rorty. Filosofia, racionalidade, democracia.São Paulo,
Unesp, 2005. p. 270
6. Solo
venimos a dormitar. (poema em nahuatl) In: José A. Franch. Mitos y
literatura azteca. Madrid, Alianza, 1994. p. 54.
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