Alguns poemas:











*   o segundo poema é um brevíssimo comentário à Divina Comédia, e a última foto é da Francine, a nossa gata.
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A ORDEM DO DIA, ÉRIC VUILLARD, 2017 – resenha do livro

 

Uma história que a cada passo, infelizmente, se torna oportuno lembrar, agora revista com o sabor de uma prosa poética direta e contundente. O conluio dos grandes empresários alemães com o nazismo e a invasão da Áustria. E o que vemos é como tanto o poder do capital quanto o desejo de uma população sedenta de dias melhores acabam por dar sustentação às mais torpes e elementares manobras com que a tirania prepara seu império.

Os Panzer alemães entram na Áustria em 12 de março de 1938


É claro que não faltaram os inocentes e as vítimas, vítimas em grande quantidade e submetidas à mais violenta crueldade. Mas houve também muita conivência e muitos se locupletaram às custas do sofrimento alheio, como é o caso de grandes empresas que ainda hoje reinam no mercado mundial.

Hitler aclamado em Viena, segundo filme de Goebels


Uma história sombria cujo preparo contou com o beneplácito da Inglaterra e da França que, embora tivessem suficiente capacidade, deixaram de agir quando poderiam ter cortado o mal pela raiz
. O exército de Hitler naquele momento era um blefe. Esperaram, e deu no que deu. Achavam que poderiam tirar vantagem bloqueando os russos, o comunismo parecia ser o problema, não o nazismo.

Oficiais alemães e nazistas austríacos riem de
judeus obrigados a limpar as calçadas de Viena


Com tiranos, entretanto, ninguém leva vantagem, todos perdem, é a lição da história que Éric Vuillard nos faz lembrar com o breve e bem urdido relato que percorremos divididos entre o prazer da boa leitura e a apreensão com relação às sombras que ainda estão por aí.


josé luiz do amaral  -  jun 2021

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COMO OS ANJOS - trecho do livro "Ideias sobre as coisas" (josé luiz do amaral)

Giotto, Capela Scrovegni, Pádua, 1304 (detalhe)

Hoje a expressão o sexo dos anjos é usada com relação a bebês com androginia, mas já se usou no sentido de que os bebês viveriam em um mundo anterior às definições, uma expressão que se tornou uma questão com as famosas discussões da escolástica medieval sobre justamente o sexo dos anjos. Nem masculino nem feminino, o que significaria com ambas ou com nenhuma das conformações, seres bissexuais ou entidades de um mundo pré-sexualizado? Mas este não poderia ser o mundo da eternidade que é, tal como a concebemos, a dimensão da completude absoluta, pois este mundo desprovido de sexo seria um mundo incompleto. O que nos leva a que os anjos, que pertencem à esfera do eterno, devem possuir uma sexualidade infinita, seres de pura sexualidade, recobertos pela sexualidade até a ponta das asas. 

Bernini, Sant Andrea della Fratte
(anjo da ponte de Sto. Ângelo), Roma, 1670

De todo o corpo dos anjos, sua forma, sua figura, o sexo deve emanar como luz, com o infinito amor de seres que iluminam e amam a luz. Não a luz reduzida à metáfora da razão pela modernidade em sua ânsia de dividir e catalogar. Não a luz que separa a razão da ignorância, ou o bem do mal ou a racionalidade e os sentimentos, como se fosse possível isolar a luminosidade da penumbra.  Muito mais do que isso, a luz em que devem pairar os anjos, só pode ser a da mais intensa vibração, como a do fogo, entendido, por isso mesmo, por Heráclito, como a substância primordial do universo. 

Peter A. Verschafelt sobre esboço de Bernini,
Castelo de São Miguel, Roma, 1753

O fogo vibra como pulsa a vida, movida por uma vibração que a impulsiona, fazendo-se ela própria impulso de si mesma. Mas não virá de bem mais antes esta pulsão, não terá sido como um primordial pulso que o universo se fez? Um fazer-se da luz como pura vibração, em ondas se reproduzindo até gerar a vida. E seria em meio a esse caminho que estariam os anjos, vibrando de emoção, de vida, de sexualidade, vibração em seu grau absoluto, como uma vida absoluta e, portanto, plena de sexualidade. Seres tão impulsionados pelo sexo quanto nós. Ou, ao contrário, nós é que seríamos semelhantes aos anjos, tal como eles vibrando impulsionados pela sexualidade que nos habita.

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UM JOGO DE DADOS - trecho de: "Ideias sobre as coisas" (josé luiz do amaral)

Murillo, Meninos jogando dados, 1675

O escritor, num certo sentido, busca a palavra ideal. Mas o que ele busca mesmo é pensar bem, pensar de uma maneira que lhe sirva e na qual ele expresse seus sentimentos, seus desejos, seus sonhos e fantasias. E, para pensar, ele precisa das palavras, é com palavras que pensamos. Embora às vezes sintamos que as palavras de que dispomos, ou que lembramos, não bastam, não pensam como estamos tentando pensar. Tentamos então dobrá-las, jogá-las de modos que fujam ao mais costumeiro, pra ver se com isso extraímos alguma coisa, ou se elas nos levam a algum lugar. E, se não conseguimos, sentimos que ainda não sabemos bem o que estamos querendo pensar, as coisas sobre as quais estamos falando ainda não estão suficiente claras para nós mesmos. Esta é a luta, o trabalho que dói e dá prazer.

Não uma dor prazerosa, isto não passaria de masoquismo e não extraímos nenhum prazer da dor. O prazer é o da busca, do mexer e remoer, ir malhando o ferro, isto é, as palavras, as metáforas, as imagens, o pensamento. Com isso, o poema, o texto, o dizer vai surgindo e, de repente está aí. Será? Então era isso o que estava batendo à porta? Relemos. Não, não era bem o que desejávamos, bota-se fora ou se recomeça. Até que, finalmente:  Sim, era isso, ufa! Agora, podemos reler cuidando das vírgulas, das faltas de concordância ou da substituição de uma ou outra palavra ou modo de dizer, mas só aí.

Então é que lembramos que há, haverá o leitor. E a dúvida se instala no lugar daquele breve momento em que nos havíamos sentido envolvidos pela onipotência do criador. Conseguimos mesmo? O leitor vai achar o quê? Talvez ache uma droga. E o pior, talvez tenha toda a razão. Será que vale à pena dar ao ler? A obra é digna de ser lida por bons olhos? Isso ocorre não só com o escritor, mas com todo o artista. Pixinguinha manteve na gaveta por anos o Carinhoso, porque este momento da dúvida e da hesitação o levou a fraquejar diante da obra e imaginar que não merecia vir à luz.

Mas, ele a guardou na gaveta, não jogou no lixo ou, mais dramaticamente, no fogo. Guardou porque com ela não deixava de ter afinidade. Era o que ele havia conseguido sentir, imaginar, dizer, ainda que houvesse depois julgado que seu pensamento fora fraco, indigno de ser mostrado. O lado do criador aconteceu, faltou foi a coragem para o encontro com o ouvinte. São, portanto dois distintos momentos. Ou seja o ato de criar não se prende à preocupação com o comunicar, embora o que vem depois, o day after, seja inevitável e, no mais das vezes, assustador. Assustador porque tudo pode não ser nada, o mais provável é que não tenha sido nada, embora para ele fosse tudo, ao menos no instante da loucura, a loucura da criação.

Mallarmé pintado por Edouard Manet

Mas não se trata de como o leitor vai ser afetado por uma ideia que se tenta transmitir.  A busca da criação, pouco ou nada tem a ver com o interesse em transmitir isto ou aquilo. Até porque quando se começa a escrever ainda não se sabe o que isto ou aquilo se vai gerar. Como lembra Mallarmé, o pensamento do escritor não passa de um lance de dados e, por isso, sempre aberto ao que pode acontecer:

cuidando 

                duvidando 

                                   rolando 

                                                 brilhando e meditando

                                                            antes de se deter

                                           em qualquer ponto último que o sagre

                                       todo pensamento emite um lance de dados(*)

Do que se trata é do encontro da criatura - o poema, o texto - com o leitor, de como eles vão se relacionar. Não de como o leitor vai entender, mas de como ele e a obra vão entender-se um com o outro. Vão dar as mãos e andar por aí, vão viajar por territórios que vão descobrir e conversar como velhos amigos, ou a obra vai ser rechaçada. O escritor não elabora ideias para que o leitor se influencie com o que ele quis dizer, ele não quis dizer ele quis trabalhar, criar, suar e voar um pouco por aí. E do seu afã o que resulta não são senão criaturinhas frágeis, tão frágeis como ele. Como elas irão pela vida só o futuro dirá... e o acaso.

 

*   Stéphane Mallarmé.  Um lance de dados jamais abolirá o acaso, 1914.

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O QUE FAZEM OS ARTISTAS - trecho de "Ideias sobre as coisas" (josé luiz do amaral)

O pintor Gerhard Richter

Artista não é sinônimo de famoso, uma confusão gerada pela promoção que envolve atores de cinema e de televisão. Também não é um ser especial iluminado pelos deuses, como foi um dia entendido e ainda o é aqui e ali. O artista tem o seu fazer e nele opera com suor e cansaço, inspiração, alegria e angústia, como qualquer outro. É claro que há artistas, verdadeiros artistas, que se tornam famosos, mas também há médicos famosos, construtores famosos. Ser artista depende de dedicar-se, mas dedicar-se inteiramente, a um tipo de fazer. Da mesma maneira que um bom médico ou um engenheiro competente inteiramente se dedicam ao campo em que operam, estes, tal como os artistas que merecem o nome, tornam-se exímios naquilo que fazem. Já ser famoso depende de vários fatores, como apoios, influências, sorte, habilidade e também, mas nem sempre, ser excelente no que faz.

O arquiteto Bjarke Ingels

O romantismo criou o mito de que há uma vida de artista, um modo de ser diferente dos outros, mais sensível, vibrante e incontido. E, num certo sentido, há. O artista está sempre atento, mesmo quando está distraído, atento à pintura, ou ao poema, ou ao desenho de um prédio, ou ainda à sequência de um filme, que podem surgir e surpreender quando menos se espera. Celan disse certa vez que o poema aguarda e espreita.(1) Ele espera que o poeta esteja pronto para então, ainda no dizer de Celan, tornar-se o seu poema. É aí que ocorre o momento mágico em que tudo parece não mais facilmente, mas mais adequadamente se encaixar. É a esse momento que o artista aprende, ele também, aguardar e a ele dedicar a sua vida, o que se poderia então chamar de vida de artista. Mas não é só com o artista que isso acontece, o cientista não realiza descobertas fantásticas a toda hora.

O poeta Paul Celan

O artista aguarda o momento em que a realização da obra parece estar formigando em suas mãos, pedindo para acontecer. Mas não se trata de uma espera descuidada, como quem mata o tempo lendo revistas que não interessam na ante-sala de algum consultório. É antes a espera do felino atento à presa, que pode até não surgir, mas o tigre, ou mesmo o gato caseiro se ouriça e se prepara, com olhos atentos, orelhas em pé e faro aguçado. Com o preparar-se é que o artista invoca e procura atrair o que talvez, quem sabe, pode surgir. Por isso, há rituais que cercam a espera e servem tanto para invocar os deuses quanto para deixá-lo atento e em sintonia com o possível acontecer da obra. E cada artista descobre os seus.

O ator Christopher Plummer em Rei Lear

Alguns escritores apontam lápis, mesmo que depois usem o computador, ou arrumam os livros, pintores reorganizam as prateleiras do seu estúdio, outros rabiscam, insistem em realizar obras que depois os desagradam, andam pela casa, caminham pelos campos ou pelo parque. Alguns poetas leem outros poetas para despertar aquela ponta de rivalidade ou de inveja benéfica. Não a inveja do invejar o outro, mas de querer também chegar lá, o que incita a caminhar. Faz parte também o embriagar-se. Não que os artistas tenham de tomar bebedeiras para chegar à obra, embora sempre haja os que o façam. Mas eles embriagam-se com o envolvimento no que se dedicam. E mais, com o envolvimento na vida. Sem este não há como criar, e o fazer se torna reproduzir, parodiar, com uma encenação vazia e sem alma.

Charles Baudelaire

É com esse sentido do mergulho no fazer, com a inteligência e a razão, mas também com os sentimentos, com a alma e com o corpo que tanto Nietzsche quanto Baudelaire apontavam a embriaguez como necessária ao ato artístico e à vida plena: Embriaguem-se. Com vinho, com poesia ou com virtude. Com o que tenham vontade. Mas embriaguem-se.(2) O artista não está no pináculo da civilização, não é o iluminado que antena o que está por vir. Não sabe o que os demais não sabem. Pelo contrário, o artista trabalha justamente porque não sabe, mas faz do não-saber caminho por onde trilha com a realização de cada obra. Por isso, e para isso é que se coloca aberto ao envolvimento com a vida até a embriaguez, para receber a graça de entender-se com o que não entende e de situar-se, ao menos um pouco, na  imensidão do que não se sabe. E é de lá, dessa imensidão, que lhe surge às vezes a boa obra.


1.   Paul Celan. Discurso no recebimento do Prêmio Büchner, 1960.

2.   Charles Baudelaire. Embriaguem-se. In: O spleen de Paris, 1869.

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DO RISO DO SIM AO RISO DO NÃO

Frans Hals

Há o riso da boa gargalhada, da risada solta de quem ri da palhaçada, dos equívocos e trapalhadas da boa comédia. Um súbito tropeção, o desencontro entre personagens, que já as comédias romanas utilizavam, a repetição da cena insólita, o quase deixar cair dos pratos pelo garçon bêbado, um riso que surge em função de uma situação que nos surpreende mas não nos assusta. Riso positivo de quem sente prazer. Um outro é o riso do bobo, que ri como um reflexo incontido que vem da sua falta de discernimento. Riso nervoso, ou então satisfeito, de quem não sabe por que ri, não chega à gargalhada nem revela uma genuína alegria, um riso que se esgota em si mesmo sem nada para revelar. Há ainda o sorriso amarelo, um riso que se esboça, mas não chega a desabrochar. Riso ambíguo de quem se depara com uma situação daquelas ante as quais , como se costuma dizer, não se sabe se é para rir ou para chorar.

Mic Matarrese como Mefisto  no Fausto de Goethe, Delaware University

 E há também o riso do cínico, que ri desde a pretensa superioridade que despreza o outro, um riso debochado, com o desrespeito de quem ri da nossa cara. Este, sem dúvida, o pior de todos, porque nefasto. O riso do não. O cínico se coloca na confortável posição de quem olha o que os outros se esforçam para construir e nega. Nega porque despreza o que não é promoção dele mesmo, o iluminado. Pior ainda quando essa gente chega ao ponto de instituir o não em afirmação, criando um movimento em cima do vazio em que se apoiam, como é o caso do negacionismo. O negacionista não precisa pensar, não precisa apresentar nada nem nada propõe, basta-lhe negar e sorrir, ou até mesmo gargalhar. Não a boa gargalhada nem o sorriso de prazer ou de aquiescência, o sorriso de quem vê o outro e para o outro amigável acena, mas o sorriso ou a gargalhada do escárnio, riso de quem se distancia dos demais tomado pela embriaguês do mal.


josé luiz do amaral

janeiro, 2020

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OS TORTUOSOS CAMINHOS DO MUNDO E DA CULTURA

     Não mudamos por revolução. A narrativa que colocou a revolução e o revolucionário como valores a serem respeitados e cultuados nos convenceu por muito tempo. Mas não se sustentou quando se evideciaram os efeitos pífios, por um lado, e desastrosos e desumanos, por outro, causados pelas chamadas revoluções. Mudamos, é claro, hoje não somos ou não pensamos como os gregos, e não olhamos o mundo e a sociedade da mesma perspectiva que eles olhavam. Mas não necessariamente evoluimos em uma linha ascendente como se acreditou um dia - uma crença que justamente embasou a ideia de revolução -, mas mudamos, sem dúvida. E, segundo a perspectiva destes tempos da contemporaneidade, o que percebemos é que, embora reviravoltas aconteçam, as transformações que se mostram consistentes e duradouras acontem por uma mistura da introdução de correções, de adaptações e também por mutações cuja assimilação pode ser bastante lenta.

O universo segundo Ptolomeu

Quando o modelo de universo com a Terra como centro, proposto por Ptolomeu e adotado pela Igreja, é implodido por Copérnico e Galileu, pode-se dizer que ocorreu uma mutação na cultura do ocidente. Mais tarde, podemos falar em uma nova mutação quando Einstein propõe suas teorias da relatividade. Entretanto, tanto Ptolomeu fizera uma adaptação no modelo de Aristóteles, quanto a correção feita por Newton no modelo coperniquiano preparou o salto dado por Einstein. Por outro lado, quase poderíamos dizer que Einstein provocou uma revolução, ao mudar a concepção milenar do tempo e do espaço. Mas a tal revolução, e mesmo a mutação só aconteceu em algumas mentes. Na maioria das pessoas, o senso comum segue apontando para como se pensava sobre o tempo e o espaço há mais de cem anos atrás. Ou seja, as coisas não costumam mudar de uma hora para outra, nem por saltos revolucionários. Esta teoria, a da mudança histórica por revolução, pode ser encarada como uma outra prova de que é aos poucos que as sociedades se rearrajam, pois segue aí em muitas cabeças mesmo que não tenha conseguido dar conta do que acontece, como já ficou para lá de evidente.

Delacroix  -  Revolução Francesa

A entronização da revolução como a forma de mudar se deu com a sacudida na Europa provocada pela Revolução Francesa. O que serviu para Marx adaptar a ideia com a teoria da evolução de Darwin e entender que a economia e a sociedade evoluem pela superação de períodos em que determinadas formas de produção prevalecem, uma mudança para a qual colaborariam, ou mesmo seriam decisivas as revoluções. Na realidade, entretanto, observando bem, veremos que a passagem para o capitalismo foi lenta e preparada por uma série de avanços nas tecnologias de produção geradas na Idade Média. Além disso, foi semeada e desenvolvida tanto ou mais na Inglaterra, em que não houve nenhuma revolta revolucionária, do que na França. E mais ainda ficou evidente o engano da idealização do processo revolucionário com o fracasso da chamada Revolução Russa, que não gerou senão regimes autocráticos e violentos, que não só não encaminharam nem um fim do capital, mas ainda impediram o avanço da democracia.

Ilya Repin  -  Revolução Russa

 O fato é que a sabedoria popular parece estar com a razão quando sugere que é preciso ir devagar com o andor, lembra que é devagar que se vai ao longe, ou comenta que nada como um dia depois do outro. Não adianta querer atropelar. Talvez, até seja possível acelerar, mas onde se apoiar para ter a certeza sobre em que direção se deve acelerar, já que o futuro não passa de uma possibilidade que o acaso torna sempre em uma incógnita. O jeito é contentar-se com trabalhar com calma em correções de rumo a serem construídas passo a passo, com cuidado, introduzindo adaptações e até mesmo criando condições para acontecerem mutações que por sua vez podem levar um longo tempo para serem assumidas. E correções que se mostram muito mais consistentes, abrangentes e duradouras se acordadas em consenso, de forma democrática, de modo a que uma grande maioria esteja convencida de sua necessidade. Não basta a ideia genial de uma mente apontada como privilegiada para construir o mundo. Ajuda, ou atrapalha, e muito. Mas o consenso, a efetiva mudança de uma cultura só se faz pouco a pouco e depende de muitas variáveis.

josé luiz do amaral

janeiro, 2021

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NÔMADES EM CARCAÇAS SEDENTÁRIAS

 

Caleb Bingham, Traficantes de peles no Missouri, 1845

Com as formigas e as abelhas talvez tenhamos aprendido o sedentarismo. Ou talvez porque fosse uma necessidade da espécie, uma espécie frágil e quase indefesa diante de feras cuja própria força física não lhes permitia enfrentar. E uma espécie cujas crias nasciam absolutamente indefesas e por muito tempo continuavam precisando da proteção do grupo, incapazes não apenas de sobreviver sozinhas, mas necessitando de um longo aprendizado para se entenderem com a cultura dos humanos. O nomadismo dificultava as coisas. O sedentarismo ajudava a enfrentar uma série de problemas. Mas significava uma perda de horizontes, a perda de uma liberdade, de uma inconsequência mesma do gesto, que o andar constante por aí possibilita, ainda que exija mais atenção e propicie uma exposição que aumenta a vulnerabilidade. Mas gostamos de nos expor, testar nossas possibilidades, enfrentar desafios. Já não necessitamos acompanhar os rebanhos em busca de novas pastagens ou de buscar a caça em outras paragens, mas ainda conservamos no sangue a nostalgia do nomadismo.

Por isso, ainda que sejamos filhos das grandes cidades e nossa vida, desde há muito,  tenha-se tornado visceralmente urbana, nos inquietamos com estar no mesmo lugar e nos sentimos sufocados pelo mundo que criamos. Viajamos sem saber bem para quê. As agências de turismo carregam para cá e para lá grupos que olham o mundo desde as janelas de ônibus com ar condicionado e encontram em cada lugar a mesmice de hotéis construídos segundo a mesma planta, com a mesma piscina, o mesmo salão de convenções, o bar e os seviçais uniformizados. Maldizemos o cimento e os altos arranha-céus e nos sentimos aprisionados no que que vemos como se constituindo cada vez mais em grandes redomas. Ao mesmo tempo, não perdemos o hábito de jogar lixo por aí, deixar dejetos pelo caminho, com o descompromisso dos povos nômades, que veem o mundo como um local em que se vai adiante sem se preocupar muito com o que se deixa para trás ou com o que se destrói. Temos sede de consumir e consumar, sem nos preocupar muito com o modo como os mais antigos povos sedentários procuram se entender com o meio circundante.

Como sedentários, nos atraem os jogos da abstração, respeitamos instituições sólidas e acreditamos no triunfo da inteligência sobre a força e na capacidade da persuasão. Sedentários tendem à democracia. Como nômades, porém, preferimos o leve e o provisório, nos rebelamos contra o estável e aplaudimos a vitória do mais forte, cuja liderança imaginamos pode nos levar aos campos da fartura. Nômades não têm paciência para a demora em obter resultados com as práticas democráticas em obter. Sedentários amam a paz e a tranquilidade estabelecida com o acordo, nômades vibram com a guerra e a imposição da vontade do vencedor, nômades apostam na velocidade dos mísseis. Mas nômades não são apenas eles, e nós os sedentários, ou vice-versa. Os dois lados estão lá e cá. Por isso, oscilamos e seguimos tortuosos caminhos. Como nômades, vemos o mundo como um lugar hostil onde vale tudo para se impor e sobreviver. Como sedentários, queremos acreditar na beleza e na alegria que deve haver além do arco-íris, o que muitas vezes leva a que nos deixemos enganar pela astúcia oportunista de líderes que com a belicosidade dos nômades se apresentam. Não é pequena a divisão que nos habita e transforma a trajetória humana em errância entre a paz e a guerra, entre a tolerância e a intolerância.

Sonhamos, como os sedentários sonham, com cidades limpas e arejadas em que não apenas tudo funcione, mas as coisas sejam firmes e duradouras. Sonhamos com mundos organizados e harmônicos em que se possa viver em paz, sonhamos com a solidariedade. Mas seguimos também sonhando com um mundo mais selvagem, o mundo dos nômades, junto às florestas cuja exuberância e imprevisibilidade replicamos no cenário do artificialismo urbano a que estamos acostumados. Admiramos a arquitetura das pontes, dos viadutos, das belas casas junto ao mar. Temos sede de construção. Mas, como nossos ancestrais caçadores e coletores do que a natureza oferece, ou parece que oferece, achamos mais fácil dominar, conquistar, subjugar desfazer o que encontramos pela frente. Como nômades, somos predadores instáveis e violentos, destruidores e depositadores de dejetos. Seguimos nômades em carcaças sedentárias. Essa é talvez a maior das contradições com que temos de aprender a conviver.

josé luiz do amaral

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O MISTÉRIO QUE NOS FAZ VIVER

Com o mistério convivemos a cada instante, ainda que ele escape aos limites da razão, colocando-se como o horizonte último que nos desafia, chamando-nos sem cessar ao impossível encontro. Embora o saber não o alcance é ele que provoca a sede de conhecimento que faz a vida florescer. Apesar disso é comum que seja deixado de lado, em uma época dominada pela técnica e pelo racionalismo, que a tudo se julga capaz de iluminar, esquecendo a escuridão que cerca e permeia a área de luz que consegue estabelecer.

É para o mistério que se volta a ciência em busca de soluções que nem sempre alcança. Mas, se em muito se ampliou a área do saber, o mistério segue se impondo e dominando o horizonte. A Nasa e outras agências investem bilhões para aprofundar-se nos mistérios que permeiam o pouco que conhecemos sobre o universo e suas mais profundas regiões. Uma amplidão sobre a qual os astrônomos mais deduzem do que sabem, como é o caso da matéria escura e da energia escura que justificariam certos fenômenos gravitacionais e representariam noventa e cinco por cento da massa-energia de tudo o que está aí. Ou seja, noventa e cinco por cento do universo são formados por algo sobre o qual se especula, mas não se sabe, noventa e cinco por cento de mistério.

Saindo da cosmologia e olhando para nós mesmos, facilmente constatamos o quanto aí a ciência também tateia. A medicina, depois de tantos avanços, pouco, na verdade, domina sobre nosso corpo e suas condições de sobreviver. Isso, sem falar na especulação sobre a existência empreendida pela filosofia ou a busca de formas melhores de convívio que ocupa a sociologia e fornece substância para as ideologias. O fato é que mais desconhecemos do que sabemos. Mas é justamente o desconhecido que nos anima, por ser a dimensão da pura possibilidade. Lá onde caminhos podem ser desbravados e males e sofrimentos, quem sabe, podem ser deixados para trás. O não-saber nos desafia, o mistério pode nos assustar, mas nos chama a viver.

Lorca acrescentou a um de seus desenhos: Solo el misterio nos hace vivir. Solo el misterio. O mistério nos permite romper fronteiras e tanto nos convida a buscar paisagens longínquas quanto nos põe em alerta para o que pode surgir logo ali, a qualquer momento, na primeira volta do caminho. O mistério abre as portas do futuro e sabiamente nos deixa sem bem saber se iremos por onde imaginamos e planejamos ou descortinaremos possibilidades que sequer conseguimos cogitar. Traz para a vida a ambiguidade e a surpresa, e é nele, antes de mais nada, que se sustenta a vontade de ir em frente, em busca do que pode ser. A dimensão que nos abre a possibilidade do sonho, da fantasia, em que tudo pode acontecer. O mistério é o pai da esperança. O mistério abre a perspectiva da transcendência, seja pelo conhecimento e pela memória seja na forma das religiões. Ultrapassar limites, ir além do arco-íris e, de uma certa maneira, ir além da morte.

A morte, este limite que nos habita e que, no entanto, a vida consciente tem tanta dificuldade de encarar. Talvez não exista aquele homem interior de que fala São Paulo. Não, pelo menos, exatamente como uma substância imortal, uma alma que abandona o corpo morto. Mas talvez exista de uma outra maneira. Há, de qualquer modo, uma substância que nos permeia e nos constitui e que é liberada quando o corpo se desagrega. Uma substância que flui em mil combinações na região do microuniverso, habitada por prótons, neutrons, e por partículas mais e mais elementares ainda, como os quarks, os muons, os bósons, os fótons, e por aí afora. Partículas que estão em nosso sangue, mas também constituem a força eletromagnética que anima o sistema nervoso e permite a nosso cérebro maquinar e imaginar. E, talvez, até estejam presentes mais do que se sabe, constituindo mesmo as vibrações de que são feitos os pensamentos, os sonhos e os desejos. Quem sabe? Onde não se sabe se imagina, se propõem teorias que talvez um dia sejam confirmadas, ou não. Entre estas, a teoria das cordas, segundo a qual todo o universo seria composto por ultra-ínfimos filamentos que vibram dando lugar, como verdadeiras notas musicais, tanto à matéria quanto à energia das partículas, dependendo do padrão oscilatório dessas vibrações.

Talvez, então, sejamos parte de uma grande sinfonia, e como vibrações musicais continuemos por aí afora. Talvez. Somos cercados pelo desconhecido, mais do que isso, permeados pelo desconhecido. E não apenas o desconhecido que surge na forma de problemas que estão aí para serem resolvidos, como quer a ciência. Vivemos em meio à atmosfera do que não se sabe, e sequer temos como saber se um dia chegaremos a saber. Uma dimensão completamente distinta daquela do problema, como lembra Gabriel Marcel, a dimensão do que se mostra sem se mostrar, se insinua e escapa, surge num lampejo para logo se esvair.  A dimensão do mistério, em que encontra alimento o desejo, com que a vida se abre à plenitude do se fim.

josé luiz do amaral

 

 

OS MELHORES ROMANCES QUE LI DESDE QUE COMEÇOU A QUARENTENA

 


As incríveis aventuras de Kavalier e Clay, Michael Chabon, 2000

A história de dois meninos sonhadores que desenham histórias em quadrinhos, um morador do velho Brooklin e seu primo que conseguiu escapar da Polônia invadida pelos nazistas. Os dois acabam vencendo no universo dos “comics” e se envolvendo em periécias as mais diversas. Para dar mais condimento, o menino polonês, que é judeu, estudou com um mágico e se tornou especialista em escapismo, como Houdini que é seu ídolo e que ele aproveita para criar um personagem que faz sucesso. Mas há muito mais.

A Fortaleza da Solidão, Jonathan Lethem, 2003

Um menino branco, filho de um pintor sonhador e marginalizado, e de uma mãe hippie que se foi, criado em uma zona de negros e colocado, por insistência da mãe, em uma escola em que sofre todo o tipo de injúrias, assim como no bairro, onde é roubado e agredido quase todos os dias por ser um dos raros brancos ali.  Um menino negro, filho de um cantor de rock em decadência e consumidor de drogas, que se impõe entre os demais meninos do bairro e se torna amigo do menino branco. Mas não se trata apenas de uma história de meninos e de sua formação. Entre aventuras que surpreendem, a narrativa passeia pela  Nova York e pelos Estados Unidos do tempo do rock, da história em quadrinhos e também da violência e da intolerância racial, onde os dois personagens se tornam adultos entre encontros e desencontros que nos emocionam.

Capital humano, Stephen Amidon, 2004

A vida de um enriquecido investidor que cria um fundo para milionários, sua esposa e seu filho, acaba por se entrelaçar com a da família de um corretor de imóveis com dificuldades financeiras cuja filha se aproxima do menino rico. O dinheiro comanda a cena, mas até por aí. O inesperado acontece de várias maneiras, sacudindo ambas as famílias e pondo em xeque seus hábitos e projetos. A esposa rica sente que vai perdendo o pé no lago de bem estar em que vive, e a filha do corretor acaba por se envolver com um menino órfão que vive com um tio que trabalha como motorista e sonha ser dono de um bar. Um imprevisto acidente acaba por misturar os dramas de todos os personagens e trazer à tona seu sofrimento e suas esperanças de refazer a vida.

O estranho caso do cachorro morto, Mark Haddon, 2004

Haddon coloca diante do leitor um jovem personagem-narrador autista que escreve o livro para contar o que lhe aconteceu a partir do momento que encontrou o cachorro de vizinha morto com um forcado e resolveu investigar quem seria o assassino. A narrativa conta as aventuras e desventuras em que o jovem se envolve e nos revela o seu modo de ser e pensar como autista, propiciando momentos de emoção e ternura, enquanto aponta as possibilidades abertas pela determinação e pela força de vontade.

O sentido de um fim, Julien Barnes, 2011

Com a narrativa calma e reflexiva, típica de Barnes, o personagem narrador, de sessenta e poucos anos, nos apresenta  uma história de amizade, desencontros e incompreensões, envolvendo um amigo do tempo de escola que roubou sua namorada e mais adiante se suicidou. Numa volta dos acontecimentos, ele recebe uma herança pequena e incompreensível que lhe deixa a mãe da antiga ex-namorada. Acaba por encontrá-la e deparar-se também com recordações e surpresas amargas que o fazem reavaliar sua antiga relação com o amigo que se suicidou e com os erros, ou enganos, que ele próprio cometeu. Apesar de um certo pessimismo e tom melancólico, uma excelente e envolvente narrativa.

Toda luz que não podemos ver, Anthony Doerr, 2014

Ainda estou lendo, mas já dá para recomendar pelo modo como a linguagem ágil, vibrante e poética nos leva a viver as cenas e conviver com os personagens, esquecendo que se trata de uma narrativa escrita. Os episódios fluem com facilidade nos apresentando personagens que, apesar da tensão do início e do desenrolar da Segunda Guerra Mundial, vivem momentos de verdadeira magia. Uma menina francesa que, apesar de cega, nos faz ver a luz multicolorida dos objetos e paisagens do mundo, e um menino que vive em um orfanato alemão cujas vida acabarão por se encontrar em circunstâncias difíceis em meio à luta pela sobrevivência.

O gigante enterrado, Kazuo Hishiguro, 2015

Sem dúvida uma das melhores senão a melhor novela de Hishiguro, nascido em Nagasaki, mas criado na Inglaterra desde os cinco anos, prêmio Nobel de 2017. Uma curiosa narrativa realista de uma história fantástica que se passa nos tempos das lutas entre saxões e bretões, dos ogros e dos dragões. Acompanhamos a improvável trajetória de um casal de velhos que percorre um cenário de aventuras em que uma estranha névoa causa o esquecimento. Surgem ainda um menino expulso de um aldeia porque teria sido mordido por um ogro, um também velho e já alquebrado cavaleiro que pertenceu à famosa Távola Redonda e um jovem cavaleiro que aparece como o vilão, mas vai revelar-se alguém que busca a verdade e quer vencer a névoa do esquecimento. Entre as mais diversas peripécias, o que marca a narrativa e nos envolve é a ternura da relação entre os dois velhos que se amparam e seguem em frente, por entre os mais estranhos acontecimentos, conflitos e encontros, até um surpreendente final que questiona a relação entre a plena rememoração e conhecimento dos fatos e o esquecimento,  encaminhando-se para um terno e melancólico desfecho.

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Cabe, frisar que se trata de obras que considerei melhores, o que não é a mesma coisa que afirmar que são as melhores. São, isso sim, as que me agradaram mais, atenderam melhor à minha expectativa, mas podem ter avaliação diferente segundo a perspectiva de um outro leitor. Algumas, entretanto, das obras que li, nestes tempos, considerei ruins porque mal armadas, com uma linguagem pouco trabalhada ou excessivamente trabalhada e, por isso, artificial e descolada do enredo, e assim por diante. Dessas prefiro não falar. Mas há alguns romances que não estou listando entre os melhores, mas que me pareceram bons e dignos de serem lidos. É o caso de Garotos Incríveis (1995), de Michael Chabon; Não me abandones jamais (2005), de Kazuo Ishiguro; Olive Kitteridge (2008), de Elizabeth Strout e Liberdade (2010), de Jonathan Franzen.

Por outro lado, já que estou apontando determinados romances como bons ou ótimos, cabe esclarecer a partir de que critérios estabeleço esta avaliação que, embora seja uma avaliação segundo uma perspectiva pessoal, não surge ao léu nem apenas ao sabor do impulso do momento. Segue então uma sucinta apresentação destes critérios que passo a enumerar a seguir.


O que espero de um bom romance

1º- Que a linguagem se mostre fluida e envolvente. Ou seja, que o texto embale o olhar, propiciando que o percorra de maneira fácil e atraente, de modo a que sintamos vontade de ir adiante e sigamos sem dificuldade, a ponto de esquecermos que estamos lendo.

2º- Para que isso aconteça, não basta, entretanto, o jogo com a língua e com a linguagem, é necessário que a história tenha uma vibração que nos atraia e nos interrogue. Foster fala que um romance deve despertar a cada passo no leitor a pergunta: e agora? e agora?

3º-  Mas é preciso mais, é preciso não só que nos sintamos atraídos e com vontade de ir adiante, mas que neste ir nos envolvamos com uma densidade, um sabor que restará ainda após a leitura, fazendo com que sintamos pena de ter chegado ao fim, como quando deixamos um bom local de férias para voltar às tarefas do dia a dia.

4º-  A densidade de um romance, contudo, não vem apenas de a história ser dramática, curiosa ou intrigante. É preciso que a própria linguagem, o modo como é narrada, nos transmita uma especial atenção à vida e uma emoção com o viver que desperta a solidariedade e a esperança.

  Então, se por um lado a linguagem precisa desaparecer para dar passagem aos acontecimentos e nos levar a viver os episódios, por outro lado, ela precisa aparecer, precisa se mostrar para nós com uma boa dose de poesia, capaz de nos emocionar e dar passagem à simpatia do autor pelos personagens, sua compaixão, suas fantasias e sua esperança.

6º-  Em resumo, não basta contar uma boa história, embora isto seja essencial. Mas, mais do que isso, é necessário ser um bom contador de histórias.

7º-  Como se tornar um bom contador de histórias já é um outro caso. Mas basta dizer, por aqui, que a vida ensina, se soubermos dar atenção à ela, vivendo-a plenamente sem barreiras e sem tentar seguir receitas prontas. Talvez valha à pena frisar ainda que viver sem barreiras é viver aberto tanto ao inusitado, ao milagre, quanto aberto à solidariedade para com o outro e tudo o que faz a vida florescer. É claro que há também um certo dom, uma certa propensão para se tornar um bom contador de histórias. Os espanhóis falam em que hay que tener duende. Mas o duende não se revela e não acontece se não encontrar condições, se não encontrar uma especial, atenta e dedicada atenção à vida, mais do que atenção, uma intensa adesão à vida.


josé luiz do amaral   -   outubro, 2020

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QUEM PODE VÊ, QUEM NÃO PODE CONTA HISTÓRIAS

O dia seguinte
(todas as obras publicadas são da Arthur Timótheo da Costa)

Recentemente, deparei-me com o comentário de um professor sobre a obra de Arthur Timótheo da Costa em que ele fazia questão de ressalvar que o pintor não se limitava a pintar senhoras elegantes. Fazia isso para pagar suas contas, mas quando podia não se ater aos limites do ganha-pão havia retratado pessoas negras como ele. Um comentário típico de quem olha mas não vê. E não vê porque sequer se mostra preocupado com olhar para a pintura enquanto pintura. Isto é, enquanto jogo com formas e com cores sobre uma superfície. O que me faz lembrar o que se conta sobre o fato de, quando reprovado por ter pintado uma mulher em azul, Matisse haver respondido que não havia pintado uma mulher, mas uma pintura, um quadro.

Colegas da Faculdade

Além disso, e exatamente porque não consegue ver, o comentarista parte para a invenção. Não fala da obra, mas de uma história que ele conta a respeito do pintor. Uma história moralizante na qual Timótheo da Costa surge como uma espécie de Robin Hood negro que pinta brancos para ganhar dinheiro e poder pintar gente da sua cor. O escritor inglês Julian Barnes conta que certa vez ouviu um monitor em uma exposição de Mantegna  comentar para os estudantes que o acompanhavam que o objetivo de Mantegna não era o realismo. Ao que ele comenta que “A única resposta possível seria: Tem falado com ele ultimamente, companheiro?”

O que nós temos para ver é a obra e é sobre ela que interessa falar e não sobre o que o pintor desejava ou não, gostava ou não. Com a obra, algo foi dito, algo foi criado que chama nossa atenção e desafia nossa imaginação. É com ela que temos de nos entender e não com a biografia do autor. Precisamos, entretanto, não esquecer que uma pintura não se resume às suas cores, pois ela existe em um contexto, relacionada a um momento e a uma determinada situação. Ela dialoga com o espectador, mas também dialoga com o jogo da arte de que faz parte.  Cabe então situá-la em função de outras obras e de um pensamento sobre o fazer artístico. Mas isso nada tem a ver com inventar o que o autor queria ou não queria dizer e, muito menos, com reduzir a obra ao que o comentarista quer dizer.

Retrato de menino

E o que vemos no conjunto da obra de Arthur Timótheo da Costa é a realização da pintura com uma especial atenção à forma bem construída, seja qual for o modelo ou o tema apresentado. Pintou paisagens, cenas históricas, damas da sociedade, personagens como a cigana, alegorias, o atelier do artista, pulando de um assunto para o outro com desenvoltura.

A cigana

Tal como em Pedro Weingärtner, um pintor que lança mão dos temas e modelos mais variados em busca de uma forma equilibrada. Uma preocupação que também aproxima a ambos pintores de poetas como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira que costumam ser classificados como parnasianos. Mais do que a classificação, entretanto, importa o que temos para ver, que em Timótheo da Costa se configura como jogo de gradações que evitam a dissonância operando com tonalidades baixas e dando preferência aos tons terrosos. De tal modo que poderíamos falar em uma certa despreocupação com o tema e uma ênfase maior na construção pictórica, importando bem mais a composição da pintura do que  se a figura retratada é a de uma senhora branca ou a de um menino negro. 

Cais Pharoux


josé luiz do amaral

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NEW YORK, NEW YORK

Série que está sendo apresentada pelo Seminário Amaral no Facebook, com postagens sobre a importância cultural e histórica de uma das metrópoles com mais intensa participação na configuração do mundo ocidental nos últimos séculos.


24/6/2020

A cidade de Nova York fica perto da Nova Inglaterra, o berço dos Estados Unidos, ali ao lado. Mas não é só isso que a coloca em uma situação especial. Sua localização geográfica a destinou, desde logo, a se tornar um dos mais importantes portos do hemisfério norte.


New York City

27/6/2020

Mais do que um dos locais primeiros da América, que ela também não deixa de ser, Nova York foi desde o início o local do comércio, da negociação e também da guerra.  Surge como Nova Amsterdam, quando os holandeses compram a ilha de Manhattan dos antigos habitantes, e depois é entregue por rendição aos ingleses que a rebatizam em homenagem ao Duque de York. Mais tarde, torna-se palco de uma das mais decisivas batalhas da Revolução da Independência e se constitui na primeira capital da nova nação. É o local onde aportaram milhões de imigrantes e de onde foram exportadas as peles das manadas do oeste. (J. C. Armytage, gravura em metal - George Washington, Long Island Batlle)


28/6/2020

Grandes fortunas circularam pelas ruas de Nova York e se instalaram, primeiro nos grandes casarões Fifth e da Madison Avenue e, depois, nos altos prédios que cada vez mais buscavam as alturas. Ali nasceu o cinema e o arranha-céu. Foram nova-iorquinos, filhos de Manhattan, Herman Melville e Walt Whitman, o que a coloca, em meados do século 19, e com imenso vigor, também na cena da grande literatura ocidental. (NYC, 5ª Avenida, séc. 19)


29/6/2020

Nas primeiras décadas do século 20, a indústria fonográfica e o movimento das casas noturnas roubaram de Chicago os grandes nomes do jazz, firmando Nova York como o epicentro da nova música. Desde a sua inauguração, em 1927, no Harlem, desfilaram pelo Cotton Club artistas como Duke Ellington, Billie Holiday, Ella Fizgerald e Louis Armstrong, entre várias outras estrelas da mesma grandeza. A música fica por conta de imaginação e da memória. Imaginem: Ella cantando "Manhattan", Ellignton tocando "Take a train A", Billie com seu tom blasé cantando alguma das melodias cheias de charme de Cole Porter, Satchmo delirando no trumpet . . .


2/7/2020

Na passagem para a 2ª metade do século 20, Nova York produz uma das mais importantes viradas na pintura do ocidente, com o Expressionismo Abstrato. Um momento em que os artistas do que se convencionou chamar de New York School, como Arshile Gorky, De Konning, Franz Kline e Pollock, renovam o moderno, abrindo-o para experiências mais subjetivas e menos racionalistas.


6/7/2020

Nova York ferve de criatividade no pós-guerra, entre 1945 e 1955. Os jornais e o show-business a pleno vapor, renovação do jazz, a Escola de Nova York como referência de uma nova pintura, mas também de uma nova poesia. John Ashbery, Frank O'Hara, Barbara Guest, James Schuyler e Kenneth Koch logo ficam conhecidos como o principais representantes de uma New York School Poetry. (Trecho de “O que é americano na poesia americana”, Frank O’Hara)


8/7/2020

O arranha-céu é filho legítimo de Nova York, que já no fim do século 19 iniciava a competição em busca das alturas, inaugurando prédios de 14 e 16 andares. Uma corrida que no início do século 20 se intensifica com o Flatiron Building atingindo 22 andares, em 1902, e, pouco mais adiante, em 1913, o Woolworth Building chegando aos 57 andares, com uma torre de 30 andares colocada sobre uma base que abarca uma quadra e possui 27 andares. Ambos hoje são marcos históricos da cidade, com outros tantos que logo chegariam a muito maior altura, como o Chrisler Building, de 1930, com 77 andares e o Empire State, de 1931, com 102 andares.



josé luiz do amaral
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