O MISTÉRIO QUE NOS FAZ VIVER

Com o mistério convivemos a cada instante, ainda que ele escape aos limites da razão, colocando-se como o horizonte último que nos desafia, chamando-nos sem cessar ao impossível encontro. Embora o saber não o alcance é ele que provoca a sede de conhecimento que faz a vida florescer. Apesar disso é comum que seja deixado de lado, em uma época dominada pela técnica e pelo racionalismo, que a tudo se julga capaz de iluminar, esquecendo a escuridão que cerca e permeia a área de luz que consegue estabelecer.

É para o mistério que se volta a ciência em busca de soluções que nem sempre alcança. Mas, se em muito se ampliou a área do saber, o mistério segue se impondo e dominando o horizonte. A Nasa e outras agências investem bilhões para aprofundar-se nos mistérios que permeiam o pouco que conhecemos sobre o universo e suas mais profundas regiões. Uma amplidão sobre a qual os astrônomos mais deduzem do que sabem, como é o caso da matéria escura e da energia escura que justificariam certos fenômenos gravitacionais e representariam noventa e cinco por cento da massa-energia de tudo o que está aí. Ou seja, noventa e cinco por cento do universo são formados por algo sobre o qual se especula, mas não se sabe, noventa e cinco por cento de mistério.

Saindo da cosmologia e olhando para nós mesmos, facilmente constatamos o quanto aí a ciência também tateia. A medicina, depois de tantos avanços, pouco, na verdade, domina sobre nosso corpo e suas condições de sobreviver. Isso, sem falar na especulação sobre a existência empreendida pela filosofia ou a busca de formas melhores de convívio que ocupa a sociologia e fornece substância para as ideologias. O fato é que mais desconhecemos do que sabemos. Mas é justamente o desconhecido que nos anima, por ser a dimensão da pura possibilidade. Lá onde caminhos podem ser desbravados e males e sofrimentos, quem sabe, podem ser deixados para trás. O não-saber nos desafia, o mistério pode nos assustar, mas nos chama a viver.

Lorca acrescentou a um de seus desenhos: Solo el misterio nos hace vivir. Solo el misterio. O mistério nos permite romper fronteiras e tanto nos convida a buscar paisagens longínquas quanto nos põe em alerta para o que pode surgir logo ali, a qualquer momento, na primeira volta do caminho. O mistério abre as portas do futuro e sabiamente nos deixa sem bem saber se iremos por onde imaginamos e planejamos ou descortinaremos possibilidades que sequer conseguimos cogitar. Traz para a vida a ambiguidade e a surpresa, e é nele, antes de mais nada, que se sustenta a vontade de ir em frente, em busca do que pode ser. A dimensão que nos abre a possibilidade do sonho, da fantasia, em que tudo pode acontecer. O mistério é o pai da esperança. O mistério abre a perspectiva da transcendência, seja pelo conhecimento e pela memória seja na forma das religiões. Ultrapassar limites, ir além do arco-íris e, de uma certa maneira, ir além da morte.

A morte, este limite que nos habita e que, no entanto, a vida consciente tem tanta dificuldade de encarar. Talvez não exista aquele homem interior de que fala São Paulo. Não, pelo menos, exatamente como uma substância imortal, uma alma que abandona o corpo morto. Mas talvez exista de uma outra maneira. Há, de qualquer modo, uma substância que nos permeia e nos constitui e que é liberada quando o corpo se desagrega. Uma substância que flui em mil combinações na região do microuniverso, habitada por prótons, neutrons, e por partículas mais e mais elementares ainda, como os quarks, os muons, os bósons, os fótons, e por aí afora. Partículas que estão em nosso sangue, mas também constituem a força eletromagnética que anima o sistema nervoso e permite a nosso cérebro maquinar e imaginar. E, talvez, até estejam presentes mais do que se sabe, constituindo mesmo as vibrações de que são feitos os pensamentos, os sonhos e os desejos. Quem sabe? Onde não se sabe se imagina, se propõem teorias que talvez um dia sejam confirmadas, ou não. Entre estas, a teoria das cordas, segundo a qual todo o universo seria composto por ultra-ínfimos filamentos que vibram dando lugar, como verdadeiras notas musicais, tanto à matéria quanto à energia das partículas, dependendo do padrão oscilatório dessas vibrações.

Talvez, então, sejamos parte de uma grande sinfonia, e como vibrações musicais continuemos por aí afora. Talvez. Somos cercados pelo desconhecido, mais do que isso, permeados pelo desconhecido. E não apenas o desconhecido que surge na forma de problemas que estão aí para serem resolvidos, como quer a ciência. Vivemos em meio à atmosfera do que não se sabe, e sequer temos como saber se um dia chegaremos a saber. Uma dimensão completamente distinta daquela do problema, como lembra Gabriel Marcel, a dimensão do que se mostra sem se mostrar, se insinua e escapa, surge num lampejo para logo se esvair.  A dimensão do mistério, em que encontra alimento o desejo, com que a vida se abre à plenitude do se fim.

josé luiz do amaral