Caleb Bingham, Traficantes de peles no Missouri, 1845
Com as formigas e as abelhas talvez tenhamos aprendido o sedentarismo. Ou talvez porque fosse uma necessidade da espécie, uma espécie frágil e quase indefesa diante de feras cuja própria força física não lhes permitia enfrentar. E uma espécie cujas crias nasciam absolutamente indefesas e por muito tempo continuavam precisando da proteção do grupo, incapazes não apenas de sobreviver sozinhas, mas necessitando de um longo aprendizado para se entenderem com a cultura dos humanos. O nomadismo dificultava as coisas. O sedentarismo ajudava a enfrentar uma série de problemas. Mas significava uma perda de horizontes, a perda de uma liberdade, de uma inconsequência mesma do gesto, que o andar constante por aí possibilita, ainda que exija mais atenção e propicie uma exposição que aumenta a vulnerabilidade. Mas gostamos de nos expor, testar nossas possibilidades, enfrentar desafios. Já não necessitamos acompanhar os rebanhos em busca de novas pastagens ou de buscar a caça em outras paragens, mas ainda conservamos no sangue a nostalgia do nomadismo.
Por isso, ainda que sejamos filhos das grandes cidades e nossa vida, desde há muito, tenha-se tornado visceralmente urbana, nos inquietamos com estar no mesmo lugar e nos sentimos sufocados pelo mundo que criamos. Viajamos sem saber bem para quê. As agências de turismo carregam para cá e para lá grupos que olham o mundo desde as janelas de ônibus com ar condicionado e encontram em cada lugar a mesmice de hotéis construídos segundo a mesma planta, com a mesma piscina, o mesmo salão de convenções, o bar e os seviçais uniformizados. Maldizemos o cimento e os altos arranha-céus e nos sentimos aprisionados no que que vemos como se constituindo cada vez mais em grandes redomas. Ao mesmo tempo, não perdemos o hábito de jogar lixo por aí, deixar dejetos pelo caminho, com o descompromisso dos povos nômades, que veem o mundo como um local em que se vai adiante sem se preocupar muito com o que se deixa para trás ou com o que se destrói. Temos sede de consumir e consumar, sem nos preocupar muito com o modo como os mais antigos povos sedentários procuram se entender com o meio circundante.
Como sedentários, nos atraem os jogos da abstração, respeitamos instituições sólidas e acreditamos no triunfo da inteligência sobre a força e na capacidade da persuasão. Sedentários tendem à democracia. Como nômades, porém, preferimos o leve e o provisório, nos rebelamos contra o estável e aplaudimos a vitória do mais forte, cuja liderança imaginamos pode nos levar aos campos da fartura. Nômades não têm paciência para a demora em obter resultados com as práticas democráticas em obter. Sedentários amam a paz e a tranquilidade estabelecida com o acordo, nômades vibram com a guerra e a imposição da vontade do vencedor, nômades apostam na velocidade dos mísseis. Mas nômades não são apenas eles, e nós os sedentários, ou vice-versa. Os dois lados estão lá e cá. Por isso, oscilamos e seguimos tortuosos caminhos. Como nômades, vemos o mundo como um lugar hostil onde vale tudo para se impor e sobreviver. Como sedentários, queremos acreditar na beleza e na alegria que deve haver além do arco-íris, o que muitas vezes leva a que nos deixemos enganar pela astúcia oportunista de líderes que com a belicosidade dos nômades se apresentam. Não é pequena a divisão que nos habita e transforma a trajetória humana em errância entre a paz e a guerra, entre a tolerância e a intolerância.
Sonhamos, como os sedentários sonham, com cidades limpas e arejadas em que não apenas tudo funcione, mas as coisas sejam firmes e duradouras. Sonhamos com mundos organizados e harmônicos em que se possa viver em paz, sonhamos com a solidariedade. Mas seguimos também sonhando com um mundo mais selvagem, o mundo dos nômades, junto às florestas cuja exuberância e imprevisibilidade replicamos no cenário do artificialismo urbano a que estamos acostumados. Admiramos a arquitetura das pontes, dos viadutos, das belas casas junto ao mar. Temos sede de construção. Mas, como nossos ancestrais caçadores e coletores do que a natureza oferece, ou parece que oferece, achamos mais fácil dominar, conquistar, subjugar desfazer o que encontramos pela frente. Como nômades, somos predadores instáveis e violentos, destruidores e depositadores de dejetos. Seguimos nômades em carcaças sedentárias. Essa é talvez a maior das contradições com que temos de aprender a conviver.
josé luiz do amaral
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