O pintor Gerhard Richter
Artista não é sinônimo de famoso, uma confusão gerada pela promoção que envolve atores de cinema e de televisão. Também não é um ser especial iluminado pelos deuses, como foi um dia entendido e ainda o é aqui e ali. O artista tem o seu fazer e nele opera com suor e cansaço, inspiração, alegria e angústia, como qualquer outro. É claro que há artistas, verdadeiros artistas, que se tornam famosos, mas também há médicos famosos, construtores famosos. Ser artista depende de dedicar-se, mas dedicar-se inteiramente, a um tipo de fazer. Da mesma maneira que um bom médico ou um engenheiro competente inteiramente se dedicam ao campo em que operam, estes, tal como os artistas que merecem o nome, tornam-se exímios naquilo que fazem. Já ser famoso depende de vários fatores, como apoios, influências, sorte, habilidade e também, mas nem sempre, ser excelente no que faz.
O arquiteto Bjarke Ingels
O romantismo criou o mito de que há uma vida de artista, um modo de ser diferente dos outros, mais sensível, vibrante e incontido. E, num certo sentido, há. O artista está sempre atento, mesmo quando está distraído, atento à pintura, ou ao poema, ou ao desenho de um prédio, ou ainda à sequência de um filme, que podem surgir e surpreender quando menos se espera. Celan disse certa vez que o poema aguarda e espreita.(1) Ele espera que o poeta esteja pronto para então, ainda no dizer de Celan, tornar-se o seu poema. É aí que ocorre o momento mágico em que tudo parece não mais facilmente, mas mais adequadamente se encaixar. É a esse momento que o artista aprende, ele também, aguardar e a ele dedicar a sua vida, o que se poderia então chamar de vida de artista. Mas não é só com o artista que isso acontece, o cientista não realiza descobertas fantásticas a toda hora.
O poeta Paul Celan
O artista aguarda o momento em que a realização da obra parece estar formigando em suas mãos, pedindo para acontecer. Mas não se trata de uma espera descuidada, como quem mata o tempo lendo revistas que não interessam na ante-sala de algum consultório. É antes a espera do felino atento à presa, que pode até não surgir, mas o tigre, ou mesmo o gato caseiro se ouriça e se prepara, com olhos atentos, orelhas em pé e faro aguçado. Com o preparar-se é que o artista invoca e procura atrair o que talvez, quem sabe, pode surgir. Por isso, há rituais que cercam a espera e servem tanto para invocar os deuses quanto para deixá-lo atento e em sintonia com o possível acontecer da obra. E cada artista descobre os seus.
O ator Christopher Plummer em Rei Lear
Alguns escritores apontam lápis, mesmo que depois usem o computador, ou arrumam os livros, pintores reorganizam as prateleiras do seu estúdio, outros rabiscam, insistem em realizar obras que depois os desagradam, andam pela casa, caminham pelos campos ou pelo parque. Alguns poetas leem outros poetas para despertar aquela ponta de rivalidade ou de inveja benéfica. Não a inveja do invejar o outro, mas de querer também chegar lá, o que incita a caminhar. Faz parte também o embriagar-se. Não que os artistas tenham de tomar bebedeiras para chegar à obra, embora sempre haja os que o façam. Mas eles embriagam-se com o envolvimento no que se dedicam. E mais, com o envolvimento na vida. Sem este não há como criar, e o fazer se torna reproduzir, parodiar, com uma encenação vazia e sem alma.
Charles Baudelaire
É com esse sentido do mergulho no fazer, com a inteligência e a razão, mas também com os sentimentos, com a alma e com o corpo que tanto Nietzsche quanto Baudelaire apontavam a embriaguez como necessária ao ato artístico e à vida plena: Embriaguem-se. Com vinho, com poesia ou com virtude. Com o que tenham vontade. Mas embriaguem-se.(2) O artista não está no pináculo da civilização, não é o iluminado que antena o que está por vir. Não sabe o que os demais não sabem. Pelo contrário, o artista trabalha justamente porque não sabe, mas faz do não-saber caminho por onde trilha com a realização de cada obra. Por isso, e para isso é que se coloca aberto ao envolvimento com a vida até a embriaguez, para receber a graça de entender-se com o que não entende e de situar-se, ao menos um pouco, na imensidão do que não se sabe. E é de lá, dessa imensidão, que lhe surge às vezes a boa obra.
1. Paul
Celan. Discurso no recebimento do Prêmio Büchner, 1960.
2.
Charles Baudelaire. Embriaguem-se. In: O spleen de Paris, 1869.
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