Murillo, Meninos jogando dados, 1675
O escritor, num certo sentido, busca a palavra ideal. Mas o que ele busca mesmo é pensar bem, pensar de uma maneira que lhe sirva e na qual ele expresse seus sentimentos, seus desejos, seus sonhos e fantasias. E, para pensar, ele precisa das palavras, é com palavras que pensamos. Embora às vezes sintamos que as palavras de que dispomos, ou que lembramos, não bastam, não pensam como estamos tentando pensar. Tentamos então dobrá-las, jogá-las de modos que fujam ao mais costumeiro, pra ver se com isso extraímos alguma coisa, ou se elas nos levam a algum lugar. E, se não conseguimos, sentimos que ainda não sabemos bem o que estamos querendo pensar, as coisas sobre as quais estamos falando ainda não estão suficiente claras para nós mesmos. Esta é a luta, o trabalho que dói e dá prazer.
Não uma dor prazerosa, isto não passaria de masoquismo e não extraímos nenhum prazer da dor. O prazer é o da busca, do mexer e remoer, ir malhando o ferro, isto é, as palavras, as metáforas, as imagens, o pensamento. Com isso, o poema, o texto, o dizer vai surgindo e, de repente está aí. Será? Então era isso o que estava batendo à porta? Relemos. Não, não era bem o que desejávamos, bota-se fora ou se recomeça. Até que, finalmente: Sim, era isso, ufa! Agora, podemos reler cuidando das vírgulas, das faltas de concordância ou da substituição de uma ou outra palavra ou modo de dizer, mas só aí.
Então é que lembramos que há, haverá o leitor. E a dúvida se instala no lugar daquele breve momento em que nos havíamos sentido envolvidos pela onipotência do criador. Conseguimos mesmo? O leitor vai achar o quê? Talvez ache uma droga. E o pior, talvez tenha toda a razão. Será que vale à pena dar ao ler? A obra é digna de ser lida por bons olhos? Isso ocorre não só com o escritor, mas com todo o artista. Pixinguinha manteve na gaveta por anos o Carinhoso, porque este momento da dúvida e da hesitação o levou a fraquejar diante da obra e imaginar que não merecia vir à luz.
Mas, ele a guardou na gaveta, não jogou no lixo ou, mais dramaticamente, no fogo. Guardou porque com ela não deixava de ter afinidade. Era o que ele havia conseguido sentir, imaginar, dizer, ainda que houvesse depois julgado que seu pensamento fora fraco, indigno de ser mostrado. O lado do criador aconteceu, faltou foi a coragem para o encontro com o ouvinte. São, portanto dois distintos momentos. Ou seja o ato de criar não se prende à preocupação com o comunicar, embora o que vem depois, o day after, seja inevitável e, no mais das vezes, assustador. Assustador porque tudo pode não ser nada, o mais provável é que não tenha sido nada, embora para ele fosse tudo, ao menos no instante da loucura, a loucura da criação.
Mallarmé pintado por Edouard Manet
Mas não se trata de como o leitor vai ser afetado por uma ideia que se tenta transmitir. A busca da criação, pouco ou nada tem a ver com o interesse em transmitir isto ou aquilo. Até porque quando se começa a escrever ainda não se sabe o que isto ou aquilo se vai gerar. Como lembra Mallarmé, o pensamento do escritor não passa de um lance de dados e, por isso, sempre aberto ao que pode acontecer:
cuidando
duvidando
rolando
brilhando e meditando
antes de se deter
em
qualquer ponto último que o sagre
todo pensamento emite um lance de dados(*)
Do que se trata é do
encontro da criatura - o poema, o texto - com o leitor, de como eles vão se
relacionar. Não de como o leitor vai entender, mas de como ele e a obra vão
entender-se um com o outro. Vão dar as mãos e andar por aí, vão viajar por
territórios que vão descobrir e conversar como velhos amigos, ou a obra vai
ser rechaçada. O escritor não elabora ideias para que o leitor se influencie
com o que ele quis dizer, ele não quis dizer ele quis trabalhar, criar, suar e
voar um pouco por aí. E do seu afã o que resulta não são senão criaturinhas
frágeis, tão frágeis como ele. Como elas irão pela vida só o futuro dirá... e o
acaso.
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Stéphane Mallarmé. Um lance de
dados jamais abolirá o acaso, 1914.
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